quarta-feira, setembro 06, 2006

à deriva...



Foto de: Andrew Dawson

Quero deixar-me ir, assim, à deriva sem passageiro qual bote de madeira desgastada abandonado e sem amarras nem remos.
Mar a dentro, nas vagas calmas de marés enchentes ou vazantes, sem destino, sem promessas, sem projectos, limpa das impurezas que constroem o destino e conduzem as agonias diárias e as contradições revoltantes de uma vida em sociedade.
Sou madeira pintada e repintada de cores riscadas e danificadas pelas águas indiferentes que passam na revolta da indiferença.
Tive um nome... minto, tive vários nomes consoante o dono que por mim passou... para uns esposa, para outros namorada e até cheguei a ser Deusa...
Agora restam letras apagadas pelo tempo que não perdoa mudanças, letras sem sentido que os curiosos tentam advinhar para poderem construir histórias desta imagem de abandono... histórias que gostaria de ouvir porque sonhadas por outrem.
Transportei dentro de mim sonhos e anseios, risos e lágrimas, esperanças de credo e confiança cega de horizontes sem risco. Fui distracção de almas sem contornos, passatempo de ilusões desfocadas.
Os balanços das ondas são como cadências de relógio de batida certa. As vagas, que imagino, transportam-me em batidas de paixão que duvido voltar a sentir.
Lá no fundo que não vejo... correm vidas coloridas que assombro com a minha presença sombria, lá no fundo há risos, há mortes, há fome, há caça, há vida pintada de ciclos que reconstroem o mundo dia a dia.
Cardumes de peixes anónimos roçam o meu casco imprudentemente como crianças de pura inocência. Cardumes iguais seguindo rotas sem linha lembrando multidões em hora de ponta.
Algas esverdeadas vagueiam como poetas de rima incerta em plena criação artística.
E neste mundo de oclusões sigo destino desconhecido entregue a ventos e águas de carácter revoltoso sem saber se o porto é seguro, se à no mundo algum porto verdadeiramente seguro e desconfiando que sofrer é apenas uma palavra de aplicação casual.

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